quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Brincar III: a criança e sua poiética

As crianças brincam desde sempre e, por isso, criam e se auto-criam. Já no útero materno iniciam a fazer seus movimentos, procurando aqueles que lhes dêem mais conforto. Após o nascimento, todos os seus gestos expressam seu caminho para a vida.
 É o que Jean Piaget denomina de jogos de exercícios, devido a criança, desde o seu nascimento, servir-se de seus mais variados movimentos na constituição de si mesmo, frente a si própria e frente ao mundo. Os movimentos vão se multiplicando aos milhares. No início parece ser tudo tão difícil e, aos poucos, na medida mesma em que eles vão sendo praticados repetidamente, ou não, as coordenações do corpo e da mente vão sendo organizadas. Não nascemos organizados, nos organizamos. Não nascemos constituídos, nos constituímos.
É o espaço potencial do subjetivo para o objetivo que vai sendo ultrapassado, através daquilo que Donald Winnicott denominou de fenômeno transicional. É a transição que vai sendo efetuada pelas múltiplas experiências poiéticas de cada criança, através de suas múltiplas catarzes (criação do novo, através da ação nos seus mais variados sentidos, que vão desde o mais material ao mais sutil e espiritual).
Aos primeiros movimentos, que são manifestos através da mobilidade (movimento externo por oposição à motilidade que são os movimentos internos, celulares), seguem-se o movimentos da fantasia e da fantasia somada à construção, como ação que realiza.
Então a criança gosta das estórias, todas as estórias, as já estruturadas, que contamos e repetimos, como aquelas que são inventadas enquanto vão sendo contadas, quando nossa imaginação nos permite. As crianças ficam boquiabertas com as estórias. Nunca vi uma criança que não gostasse de estórias. Todas gostam e mantém um desejo de ouvi-las e ouvi-las e ouvi-las, novamente e novamente e novamente... São incansáveis na escuta das estórias.
Elas criam e recriam o mundo a partir da fantasia. As crianças compreendem e recompreendem o mundo a partir delas. São muitos os entendimentos que nascem das estórias, além de abrir as portas para as possibilidades de fazer a mesma coisa: dar-se ao direito de criar o mundo a partir de sua fantasia. Então, criam suas próprias estórias, assim como criam o mundo segundo essas mesmas ou outras estórias. Vivem o e no mundo, assim criado.
A esse período, Jean Piaget deu o nome de pré-operatório, sem com isso desejar dizer que aí as crianças não operam com nada. Elas operam com tudo, pois que tudo se organiza conforme sua imaginação. Pedaços de pau transformam-se em carros, ônibus, cercas, casas, aviões, armas e tudo o mais que se quiser. Não há limite para as possibilidades da fantasia e do “fazer de conta”.
Essa é a poiética predominante entre os dois e os cinco, seis, sete anos de idade. De criação em criação, o mundo interno se organiza e se personaliza, assim como vai se estabelecendo a ponte para o mundo exterior; vai se transitando do princípio do prazer para o princípio da realidade, como diria Sigmund Freud, sem se engessar o prazer na realidade (o que os adultos bem que gostariam,“para que as crianças não dessem problemas”). Devagarinho e com as dificuldades próprias e naturais, vai se processando um movimento onde o total prazer vai adquirindo os contornos da realidade. E, então, prazer e realidade forma um todo. Ao menos assim deveria ser, caso nós adultos não impuséssemos o olhar de que a vida, para ser vivida, necessita de passar pelos desprazeres. “Tudo o que é fácil não vale a pena”, dizemos.
De um modo sagrado e profundo, cada criança realiza seus gestos e suas brincadeiras como se a sobrevivência pessoal e do mundo dependessem deles. Não há divisão interna nesses gestos e atos; uma entrega total a cada um deles.
Em nossa família, temos um hábito de ter um Papai Noel nas Festas de Natal. Ano a ano, um dos tios se veste de Papai Noel e traz um saco às costas com os presentes daquele Natal. Meninos e meninas, agora já estão crescidos, com dez, onze, doze anos, todos querem o Papai Noel (os adultos também). E, então, encenamos o tio que some, vai se vestir e entra de alguma forma esquiva para dentro do espaço onde nos reunimos. Eles e elas, que estavam esperando, já sabem, há muito quem vai ser o Papai Noe (“É meu tio fulano”; “É claro que é”; “Veja o pescoço dele” --- a barba postiça não é suficiente para escondê-lo, mas ninguém pensa nisso; o que importa é o Papai Noel). Porém, juntos, vivenciam a experiência, de receber os
presentes, rirem, partilharem as cenas. Ali estão todos juntos --- alegres, nada mais que isso ---, como se o mundo fosse somente aquilo nesse momento e, de fato, o é. Estão plenos e realizados.
É tão pouco, parece, mas é assim que o “mundo” é feito, de coisas simples, corriqueiras até; é poiético. A simplicidade está na base, junto à fonte de nossa vida. As crianças por estarem próximas disso, vivem tudo inteiramente de forma alegre e grave, ao mesmo tempo; por isso, profundas e leves. Essa é a poiética da criança, o seu brincar, que pode e deve permanecer sempre como uma fonte para nós, que seguimos nossos caminhos pela adolescência e pela vida adulta.

Cipriano Carlos Luckesi1

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